segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

GAMBUZINE

 

Teresa Pestana é séria mas tem coração de ouro. Há um bom tempo edita o clássico GAMBUZINE, e depois de tanto tempo caiu na furada de ser colaboradora de nosso livro. Confira em primeira mão o que pensa esta distinta dama dos quadrinhos!
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1)      Com que idade você começou a desenhar e a ter contato com as histórias em quadrinhos?

com a idade que toda a gente desenha ,antes de nos meterem o conceito de artista na cabeca ,
tinha um tio anarquista cheio de livros de HQs e fanzines inclusive, acho que me lembro desde sempre de livros hqs


2)      Como você se viu produindo quadrinhos e depois se auto editando?

acho que vem do tempo em que eu andava na rua aos 16 anos a vender pinturas e desenhos
(e vendia  coisas muito ktisch parecidas com os desenhos nipónicos de hoje)  nos finais de 70 xerocopias popularizavam-se aí,
comecei a tomar contacto com a "massa rebelde da polulacäo" e todos eles tinham os seus autoeditados;
senti que tinha que fazer como eles


3)      O que é o gambuzine? Por que esse nome?
em portugues o gambuzino é um bicho que näo existe, gostamos de enganar tótós
dizendo que o gambuzino se apanha de noite com uma lanterna e um saco de pano
que é melhor que lagosta depende do sitio onde se está o gambuzino vai crescendo á medida da imaginacäo de quem quer enganar o outro
podemos manda-lo para o meio do mato , para a beira da estrada, para as arvores de noite com uma lanterna e borrado de medo
por vezes acompanhamos a vitima na caca(  ler cassa que esta porra näo tem cedilhas)
ao gambuzino para nos rirmos um pouquinho ,para ver até onde vai a ingenuidade porque chega
o momento em que a pessoa
pesca que está sendo gozada
funciona bem com turistas ingenuos
 

4)      Você já teve algum contanto com a cena punk rock?
as pessoas que faziam música  em ocupas, nem todos punkrockers, muito metal punk claro e algum reggae
contacto com essa e com todas as cenas que metem marginais de toda a espécie;
de bandidecos a bandidöes, tresmalhados de toda a espécie punks, anarcas, gays rastas, dissidentes do sistema capitalista, gente aluada
artistas musicos saltimbancos enfim todas aquelas pessoas que teem algo contra a sociedade
de resto
tenho uma atraccäo por malucos e eles por mim , mas felizmente agora distingo melhor os perigosos 
 



5)      Como você vê a relação do artista com o mundo?Ou vale tudo para satisfazer o mercado?
Essa é complicada ,o artista tem de viver,mas tambem tem de ter principios
acontece que o sucesso da arte muitas vezes depende de bons contactos,de mediatismo e pode literalmente ser fabricado
o meio da arte continua ter uma percentagem enorme de criaturas pedantes,snobs, gente convencidas , superioridade intlectual etc etc 
nas suas origens a arte é religiosa simbolica e muito mais virada para a vida do que para o comércio
hei todos nos vemos montes de merda bem promovida , gente sem imaginacäo vivendo como grandes artistas
o angeli dos escrotinhos tinha uma tira optima sobre isso "odeio arte para ricos "
nem é preciso dizer mais nada



6)      Você também é bem crítica diante dos clichês das juventudes e rebeldes. Comente onde isso aparece no seu trabalho.
Será a juventude pouco imaginativa? näo há em todas essas cenas um dress code? e näo estamos fora se näo os seguirrmos?
näo há uma ordem social como em todas as outras sociedades humanas?
somos rebeldes quando somos jovens porque é mesmo assim, a maior parte dos rebeldes de ontem säo os acomodados de hoje
há muitas coisas que com os anos cansam por exemplo quando 30 jovens diferentes te dizem todos a mesma coisa , uma banalidade como
se fosse uma revelacäo, á näo há saco nem ouvido é penico
e tu sabes que eles falam assim porque ainda näo teem compromissos, ainda säo muito jovens säo saúdáveis podem dormir ao relento e roubar para comer
todem estar despreocupados e curtir
näo teem ainda uma familia para sustentar, chega sempre uma altura que a vida do nada, da rua näo dá mais
é humano e normal
é preciso ter dinheiro certo para ter um cantinho, ou para pagar estudos ou para qualquer outra coisa näo importa
e
quando uma compreende que tem pouco ou nenhum poder para mudar o mundo aí entra-se na idade adulta , nems ei se sou assim täo critica com a uventude
de uma certa forma ainda tenho esperanca nos jovens que säo verdadeiramente rebeldes e poderäo vir a ser bons reformistas da sociedade 
as pessoas säo sempre as mesmas , mas o mundo muda e os mais jovens percebem instinctivamente os erros das geracöes anteriores





 



7)      Por quais lugares você já viajou ou morou?
portugal , mocambique e alemanha em portugal já morei do norte ao sul
o país é minusculo mas incrivelmente variado 
na alemanha morei com os punks em ocupas (squats)
mas todos os rebeldes sejam lá de que tribo forem sempre se cruzam
assim como as geracoes se cruzam que seguem uma linha comum
os squats punks alemäes já veem como descendencia das velhas comunas hippies






11)  Como foi a produção do álbum com seus postais de viagem?
foi longa e demorada, os meus leitores habituais näo gostaram, "isto é muito esóterico, näo tem humor nehum
é uma seca, um saco etc" esperei 5 anos para conseguir editar, näo tinha dinheiro ,
tinha mudado para uma casita no campo perto da fronteira espanhola que ficou cercada pelos incendios de 2003
levei algum tempo até voltar a ter uma casa e paz de espirito para trabalhar..
foi duro e no final a única coisa que o livro teve foram boas criticas
para quem precisa de alento foi deprimente
acho que é um livro que diz muito mais aos brasileiros do que aos portugueses,
muitos brasileiros teem as suas origens naquela costa africana
o maior problema entre portugal e brasil é o preco da porra dos correios
é super caro


8)      Você tem alguma relação com Alemanha?
Olha tenho uma grande simpatia
é um pais com uma história muito forte,capaz de todas as loucuras e todas as regeneracöes,um país 
que deu gente muito espertinha ao mundo mas...
como dizem os" the fall" o diabo tem o dedo no mapa da alemanha 
fiz amigos para a vida ,toda a gente tem medo da alemanha por causa de hitler acham que em cada alemäo
se esconde um possivel nazi (o mesmo tipo de preconceito que podia existir em cada portugues ou espanhol; uma mentalidade de conquistador)
os alemäes säo incrivelmente sentimentais;cheguei la sem nada fugida do portugal em crise e sem futuro
ganhei logo ,uma casa ,um sitio para expor, uma bicicleta e botas de inverno
 tambem lá levei porrada de skins, mas em portugal tambem levei


9)      Você é uma bruxa?
Toda a gente diz que sim, mas eu acho que näo


10)  Você teve alguma experiência sobrenatural quando viajou pelo continente Africano?

Sim, quem procura sempre encontra


11)   Você gosta de animais? Você tem algum animal de estimação?
eu estimo todos os animais, por isso tenho sempre um peso na consciencia ,
näo como mamiferos e fui vegetariana durante mais de uma decada mas fez-me
mal à saude, por isso volta e meia como uns peixinhos , e como tenho cäes
(que recolho porque estäo feridos perdidos abandonados etc) costumo passar pelo tenebroso talho (acouge) para ir buscar 
comida para eles
é dificil ser-se coerente com tudo, quase impossivel


12)  Faça uma seleção de dez músicas favoritas.

 hei isso é praticamente impossivel eu gosto de tanta ,mas tanta coisa diferente
de jimi hendrix a nomeanno de bad brains a frank zappa, de dead kennedys a steve reich, de prince farI a linton kwesi johnson
de musica do mundo a electrónica, de dub ao metal , jazz blues pop rock comtemporanea classica antiga
cada semana tenho umas 10 musicas nos meus tops
agora nesta semana ando a curtir mais santogold, alice donut, captain beefheart,arvo pärt, jalal(dos last poets) tom zé , mäo morta e overkill



13)  O que você conhece do Brasil?
infelizmente da terra näo conheco nada, porque nunca pus aí os pés, mas tenho aí familia e até corre sangue indio tupi nas minhas veias 
da cultura conheco muito boa musica tambem de estilos muito diferentes,um cinema forte e original
e um governo que sempre se enterra em corrupcäo e escandaleira tal como
 o nosso só que o brasil é muito mais rico que portugal e gigantesco
seja como for os bandidos tomaram conta dos governos isto é geral


                         15 gambuzinar ...apenas
até já eu depois contacto-te e fica atento ao correio e aos selos




Abaixo, A crítica literária do cadernos de viagem, escrita por Pedro Moura, de Portugal, do blogue:
http://lerbd.blogspot.com

Postais de Viagem parte de um pressuposto: dá-nos conta de eventos (e documentos) que ocorreram realmente a uma pessoa ausente, conhecida pelas siglas de “A.C.”, que se torna uma personagem-sombra na sua própria história, e cuja representação física nem sempre se procura efectuar ou que se disfarça noutras formas, ganhando apenas contornos através da sua voz, um “eu” que igualmente se vai dissolvendo na sua descrição da particular África que a rodeia, o antigo Benin/Dahomey (o qual, como veremos, não existindo no modo oficial de desenhos a tinta sobre mapas, corresponde ainda a uma realidade, intangível, que respira num domínio outro: espiritual).
Apesar desta imensa linha narrativa central, que alinha as cerca de cinquenta pranchas do livro (que o é, apesar do formato nos remeter mais ao universo de revista, e que pode constituir um factor “comercial” para a invisibilidade deste - e outros - projecto nas enchentes dos escaparates mais conformados e normalizados), há todo um ritmo de staccato que nos remete para as obras anteriores de Teresa Câmara Pestana, nomeadamente o seu longo e saudável Gambuzine, e a dilogia Aqui? Babilónia e Continuamos aqui? Com isto quero chamar a atenção para a construção de uma diegese, indubitável, através do que parecem ser momentos separados em termos temporais e espaciais bem mais intervalados do que sucede na banda desenhada mais normativa. Nesse sentido, remete-nos para todo um universo de discussões de fronteiras entre esse modo apertado de ver a banda desenhada com outras obras que se veriam mais próximas da área da ilustração, ora pelo seu carácter de uma fragmentação maximal que faz emergir um sentido coeso (aproximando-se de Holbein ou Hokusai, de Warren Craghead a algumas obras de Gorey) ora por esse tal movimento pausado mas rítmico de narrar (aproximando-se, desta feita, de Loustal ou José Feitor/Luís Henriques em Babinski).
Uma pequena nota: a possível psicologização da leitura através de um confronto da protagonista com a personalidade da autora pertence a um outro tipo de trabalho interpretativo que não me pertence. Será curioso levantar algumas questões por entrevista, sem dúvida, e do cotejamento com a “personalidade” das publicações anteriores, mais “neuro-bio-psico-quemo-molabilo-sapiens”, ou “cultura escarreta”, para utilizar as palavras da autora, transformada em Postais numa pessoa inserida numa maior serenidade, resultará seguramente alguma leitura de interesse. Mas não é esse o meu papel, repito-o, e falo aqui da protagonista (elemento narratológico) e dos eventos do livro através dos signos legíveis nele inscritos.
O que emerge é um retrato de um encontro. Um encontro entre uma mulher e um lugar, o qual, apesar de ser identificado na sua mais exacta concrescibilidade, o território do Dahomey (hoje compreendendo “parte do Togo, Nigéria e todo o Benin”), surge como metonímia de um outro lugar, que pelos seus contornos vagos se torna metáfora: África. Metonímia, não sinédoque, porque é como se esse Dahomey não fosse meramente uma “parte” de um “todo”, que é África, mas como se a relação fosse de exponencial projecção de fantasmas (quer os dos mortos, da tradição, quer os mais ilusórios, provocados pelo estrangeiro). Por outro lado, a protagonista, diminuída a um “A.C.”, e já que estamos a falar de figuras de retórica relativas aos significados implicados, constitui o que na antiguidade se chamava de inopia (“carência de uma expressão própria”, segundo Lausberg). Ou seja, o que vemos aqui suceder é um movimento paralelo e diametralmente oposto: à medida que a protagonista se “apaga” (se torna sigla, sombra, fantasma) mais assoma uma imagem de África (que, de tanto consumir em seu torno, também se torna igualmente fantasmática). Esse movimento é logo explicitado nas duas primeiras páginas do livro, que parecem opostas: uma explicando o desaparecimento progressivo de A.C., a outra explicando, quase enciclopedicamente, a unidade espácio-temporal (e para além dela) onde se desvendará a sorte da protagonista, o seu mergulhar.
Existem, como se sabe, muitos livros sobre este tipo de encontros, entre o homem-de-fora (o estrangeiro, o forasteiro, o bárbaro) e a nova terra (“nova” para o recém-chegado); e África parece suscitar paixões mais arreigadas que os demais locais, para nós (“nós”, que a ideografia e infografia apelida de “homens” do mundo de Cá). Existem vários graus de entrega e de diálogo, obviamente. Aquando da Cimeira Europa-África, um grafitti de rua rezava o seguinte: “África Minha, o caralho”. Penso que essa frase congrega todo um sentido múltiplo que se pode entender dos papéis que se efectuam para com esse animal mítico que é África. As mais das vezes, não se fala de um país concreto – e as suas pessoas, suas culturas, línguas – já que foram as linhas de tinta dos europeus que delimitaram o espaço de um modo como ele não existia para as famílias que ali existiam. Por isso, fala-se de África, no geral, como se houvesse mais em comum, uma massa uniforme (para não dizer informe, pronta a moldar consoante os propósitos) entre um etíope e um angolano do que entre um português e um lapónio. E esses livros e obras mostram sempre uma distância entre essa África, desconcretizada, descarnada, mitificada enfim, e o visitante. Teresa Câmara Pestana esforça-se por mostrar uma entrega muito profunda de A.C. à sua nova casa, lar, mundo, onde o mergulhar não é o de uma observadora externa, muito menos de uma curiosa ou turista, mas a de uma estudante que pretende atingir uma metamorfose final. Procurada sobretudo através da sua entrada no círculo religioso ali existente, o do yoruba/orixá. E conseguida, afinal, pela sua obliteração absoluta.
Todavia, há ainda pequenas máculas da natureza citada, dessa distância impossível de transpor. Em alguns momentos, a protagonista desvenda essa distância de duas maneiras. Por um lado, facto inevitável, depreende-se, queiramos explicar isso através dos exercícios da auto-ficção, do ligeiro disfarce autobiográfico, do desvio permitido pela criação ficcional, que a protagonista é ocidental (branca?, portuguesa?) e, logo, não cresceu no interior da cultura na qual deseja, não só entrar (através da aprendizagem ou da emulação) mas mergulhar (confundir-se em). Prova: aquando da cerimónia do ebo (rito de purificação, em que a protagonista finalmente estabelece paz e se plasma com o espírito que a persegue), lê-se o seguinte: “O ambiente é no entanto extremamente solene, apesar do ar pouco sério das figuras felinas no altar”. De que deriva esse “ar pouco sério”? De uma verdade intrínseca à cultura vudu, em que o leão e o leopardo são considerados como impossíveis de domesticar e por isso sinal de um poder que escapa às malhas dos homens, da circunstância específica de representação do artista que esculpiu estas imagens, com um humor pessoal? Ou antes da atitude desta “estrangeira” que vê nesta representação – quiçá austera até – laivos de alguma “ingenuidade”? Logo a seguir, quando finalmente os “cavaleiros” (i.e., a pessoa que o espírito, o orixá, “monta”) entram em transe, a protagonista descreve como todos os elementos conjuntos “induzem rapidamente os participantes mais sensíveis a um estado de mente alterado”. A escolha deste termo, praticamente clínico, aceite na literatura que lhe é específica, induz-nos na crença que há uma diferenciação entre esse estado “alterado” de um outro, “normal”. Todavia, num crente (por outras palavras, numa pessoa que está no interior desse sistema de crença, de pensamento, de modo de estruturação do mundo), essa diferenciação dissipa-se, não existe, é um contínuo. Nós, os “de fora”, não entendemos, apenas vemos o contorno, linha grossa, da diferença. O mesmo sucede na nossa própria cultura. Em todas as missas católicas, dá-se um milagre: a transubstanciação. Para os crentes, a hóstia é (torna-se, transforma-se, metamorfoseia-se) o corpo de Cristo, o vinho é o sangue de Cristo; para os não-crentes, não passa de um disco de pão, de uma gotas de vinho. Não há milagre, para nós, os não-crentes. Não tem nada a ver com uma verdade adquirível pela lógica, pela cientificidade, pelo racionalismo positivo. Não se trata de uma simples dicotomia de ser versus não ser. É antes uma oposição intransponível entre crer-se ou não se crer.
Entenda-se, porém, que estas ligeiras diferenciações da protagonista são isso mesmo, ligeiras, mínimas. Quase sempre, o retratista toma alguma distância do retratado. Podem ser uns meros passos, para poder reverter todas as sombras e luz num rosto legível e claro, ou ausentar-se de qualquer ideia de proximidade para poder fazer emergir um panorama. E, seja qual for essa distância, portanto, nós, leitores, somos confrontados – ainda que numa só unidade de espaço e de tempo – com o retratista e o retratado, duas presenças. Contíguas ou sobrepostas, justapostas ou ligeiramente diferenciadas, duas presenças. A protagonista do livro de Teresa Câmara Pestana atasca-se de tal modo no seu retratado que estas duas presenças acabam por se dissimular uma na outra, e impedem-nos de as destrinçar com facilidade, se de todo. A presença de uma repercute-se na da outra, incessantes.
Esta flutuação, transporte, trânsito, indecisão, ou até indiscernibilidade, ganha forma nalguns dos modos de estruturação das pranchas de Postais de viagem. Todas elas são compostas, regular e infalivelmente, por duas grandes vinhetas – os “postais”. Mas em muitos casos (dez, para ser preciso), as vinhetas unem-se para formar um rosto (ou corpo) único, que parece emergir das marcas impressas nos desenhos, mesmo que partes desse rosto sejam outros tantos rostos (lembra, sem que haja aqui necessariamente ligações directas, algumas das pranchas de David B.); noutros casos, há pequenos ecos entre as duas vinhetas, de uma sombra que continua, de uma cobra que se repete, de uma porta que se move, uma cabeça que se afoga. É como se fosse uma estratégia da autora em fazer com que algo “oculto” emirja no plano do visual para além do visível. Se faço esta distinção, é porque estou a seguir uma lição de Georges Didi-Huberman, a qual, para expô-la de modo sucinto (mas redutor, atenção), a segunda refere-se àqueles elementos que correspondem às nossas percepções mais superficiais, ao passo que o visual está para o campo que as obras de arte abrem ao nosso olhar, “maior”, digamos assim, que a mera visibilidade. Não se trata de nenhuma espécie de magia, nem de uma representação do “invisível” – que se o é não é representável de modo algum – mas de um acesso ao “inconsciente do visível” (expressão do autor francês): “uma região da figura que terá a potência obsidiante dos fantasmas, ou a fatalidade dos sintomas, ou o valor de prazer dos trocadilhos, ou ainda o valor alucinatório das imagens dos sonhos... Em suma, a capacidade, a potência de constituir cada figura numa dialéctica do desejo e num verdadeiro tesouro de sobredeterminações psíquicas e culturais” (L’image ouverte, pg. 198). A sobredeterminação – na qual interferem vários factores criando essa massa de significados intricados - é veiculada aqui por uma junção num plano maior do que nos surge separadamente, como se existisse um fundo uno, uma dimensão superior, no qual as diferentes camadas “visíveis” (vinhetas/postais) nos surgissem separadamente. E a existência desse plano superior leva-nos a pensar na continuidade desse movimento, até atingirmos o livro como um todo (ou até além, pela via dos conceitos e da Imaginação; Thierry Groensteen discutiu isto, de outro modo, sob o conceito da tressage).
Falei, a propósito de outro livro, da ascensão e integração daqueles sinais a que se dá o nome de “outsider art” nas artes contemporâneas, sobretudo na banda desenhada. Os traços gráficos de Teresa Câmara Pestana desfazem-se dos elos historicistas que insistem no primitivismo das artes africanas, no seu domínio decorativo, funcional, ingénuo – e, seja como for, isto é verbalizado pelas palavras de A.C. São raras as vinhetas que se pautam pela claridade legível mais típica da banda desenhada, onde a personagem principal se inscreve numa indiscutível unidade espácio-temporal, de acção, de sentido, etc. As imagens e a plasticidade das formas e dos sinais ganham nestes desenhos um valor de presença carregado, que não revela de um emprego metafórico – outro modo de diferenciar, de estranhar – mas antes de uma cidadania que pretende ecoar essa derrocada de fronteiras. O mundo outro é aqui. Vejam-se as discussões em torno das três manchas que acompanham, ou melhor, são qualquer mulher e homem: a sua sombra, a sua alma, o seu duplo (de extremo interesse, por serem “separados à nascença” de nós mesmos, mas que “andam sempre por perto” apesar de “não devemos ver”; mais, “significam morte iminente”: separar-ajuntar-separar-ajuntar até à mescla final, de resto, idêntica à inicial... Este movimento é contínuo em Postais...).
Porém, se todo este jogo contínuo de movimentos compassados e de sombras se faz ao nível da inscrição visual, isto é, a própria construção de Postais de Viagem, é devido à vontade de a autora procurar a genuidade dessa relação, desse intervalo intransponível. Assim, o desvendar dessa imperfeição torna esta obra mais justa do que aquelas outras que pretendem dissimular essa distância através de elos românticos ou mais mitificadores ainda do que a ebriedade que os mitos locais permitem, e à qual A.C. se entrega.
Nota: agradecimentos a Teresa Câmara Pestana, pela oferta do livro.




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